HIV nos dias de hoje
Doença ainda é motivo de muitas lendas urbanas e muito preconceito sem nexo
Chegam na minha sala dois homens simpáticos, um casal. Um ou ambos têm HIV. Eles se encontraram por acaso, e estão juntos há muitos anos. Quando solteiros, em um relacionamento novo, sempre havia aquele dilema: quando contar?
Se no início, pode assustar; se contado mais para a frente, pode gerar desconfiança. A infectologista aqui sempre fala que a verdade é sempre o melhor caminho. Mas entende e empatiza com essa dor e essa angústia de escolha do melhor momento.
O HIV ainda é motivo de muitas lendas urbanas, muito preconceito sem nexo. Ainda tem gente que acha que o vírus fica em suspensão no ar, que atravessa pele íntegra, que se transmite por estar no mesmo lugar, por abraço, por beijo, que dá pulinhos até encontrar o sangue do outro. Constrange o paciente desde a hora de buscar o remédio no SAME (ou DST/AIDS, ou CTA, ou SAE) em que funcionários totalmente despreparados não sabem falar sem a recepção inteira escutar, até agendar uma cirurgia ou ir ao dentista. Todos têm uma história parecida, em que saíram um lixo de algum consultório, laboratório, hospital. Justamente os lugares onde deveriam ser mais acolhidos.
Eu costumo dizer que é mais seguro transar com alguém com HIV em tratamento regular e indetectável que com qualquer outro que não sabe seu status sorológico: na primeira situação, a chance é zero; na segunda, é 50% de chance de adquirir o HIV (se ele tem, tem carga viral detectável e transmite).
Muita gente (ainda) não sabe, mas ter HIV hoje em dia é igual vida normal, poder ter um relacionamento, poder ter coito desprotegido e não transmitir o vírus para o parceiro, poder ter filhos saudáveis, viver até mais que a população geral (estudos mostram que o paciente portador de HIV vive, em média, 10 anos a mais, simplesmente pelo fato de ir com frequência ao médico, com a oportunidade de prevenção de doenças crônicas, ter a carteira vacinal atualizada, etc).
Então, além de ter que lidar com a coisa toda de ser gay numa sociedade latina, moralista e cis-heteronormativa, ainda tem que lidar com o fato de ter um vírus estigmatizante, tudo isso tentando vivenciar sua sexualidade na plenitude enquanto procura alguém que o aceite como ele é. Nada fácil.
Então, ver um casal assim, estável, parceiro, é motivo de felicidade para a médica aqui. Porque eu sei o quanto foi árduo galgar esse caminho.
Muitas vezes, um aceitou mais fácil a doença, e arrasta o outro para o consultório. Pede para eu convencer o parceiro a fazer o tratamento, já que ele foi traumatizado por um colega médico infeliz ou até algum amigo-da-onça que incutiu a idéia de que a morte dele chegará em breve. Ou que o tratamento é repleto de efeitos colaterais que irão deformar o seu rosto, ou reduzir sua musculatura, ou redistribuir sua gordura corporal (a tão temida lipodistrofia).
Começo me apresentando e acalmando os dois. Digo: “você vai ter uma vida normal, até melhor que antes. O tratamento é simples, descomplicado”.
Quase sempre, o que arrastou o outro é expansivo, emotivo e sensível. Fala pelos dois, explica toda a história e sabe de cor e salteado todas as medicações que já usou: “Primeiro eu tomava aquele branco com o amarelo (biovir e efavirenz), tinha uns sonhos intensos, depois mudou para o 3 em 1 (tenofovir, lamivudina, efavirenz), ficou mais fácil a posologia, mas os sonhos continuaram. Aí meu índice de triglicérides começou a aumentar, e eu troquei o efavirenz pelo dolutegravir, ficaram dois comprimidos. Aí o meu antigo médico viu que o rim não tava lá essas coisas, e eu to tomando esse atual aí… tirou o efavirenz, ficou só o dolutegravir com a lamivudina. Achei pouco, mas segurou a carga viral”.
O outro sempre é mais reservado, fala pouco, observa muito. Faz algumas perguntas sobre o remédio, na maioria sobre efeitos colaterais. Explico sobre o que é CD4 e carga viral.
Os dois, na maioria das vezes, estão em um relacionamento aberto, mas sempre juntos.
Eu nutro um carinho especial por todos os meus pacientes, mas quando vejo um casal assim, meu coração transborda de amor e compaixão. Não tem outra forma de controlar a epidemia de HIV no nosso país sem acolhimento verdadeiro por todos os indivíduos que compõem os grupos de maior incidência do HIV (gays, homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo, transgêneros).
Esse caminhar de superação diária que eles precisam enfrentar é de tirar o chapéu. O mínimo que nós, profissionais da saúde, precisamos fazer é acolher e orientar.
Todo meu amor e admiração por todos os casais gays, em especial àqueles portadores de HIV. Estamos juntos, sempre.